ILHÉUS - Do casarĂ£o colonial avarandado, Ă© quase possĂvel ver, contra o pĂ´r do sol alaranjado, a imagem do coronel Domingos Adami de SĂ¡ montado no lombo de seu cavalo. ChapĂ©u na cabeça, paletĂ³ fino, sapato italiano e bigodĂ£o lustroso, ele se afasta pelo caminho de pedras que o leva para fora da Fazenda ProvisĂ£o, nos arredores de IlhĂ©us, na Bahia. Pelo passo da montaria, Ă© possĂvel chutar que seu destino Ă© o Centro da cidade, onde sete dias depois — hoje, em 15 minutos de carro se faz os mesmos 25 quilĂ´metros — chegaria ao Bataclan, a famosa casa de quengas de Maria MachadĂ£o.
Coronel Adami — notĂ³rio “raparigueiro e o terror do bordel”, segundo seu tataraneto Roberto Novaes — fez parte de uma geraĂ§Ă£o do sĂ©culo XIX nutrida a pĂ£o de lĂ³: transformou cacau em ouro e, com o ouro, fez as estripulias que povoam o imaginĂ¡rio popular e as histĂ³rias do escritor Jorge Amado. Acender charuto com nota de US$ 100, dizem os nativos, era rotina entre os poderosos chefões.
Visitar o Centro HistĂ³rico de IlhĂ©us e as coloridĂssimas fazendas de cacau implica comprar passagem para vĂ¡rias datas do passado. ResquĂcios dos tempos de bonança podem ser encontrados em todas as partes. Afinal, o cacau deu fortunas aos coronĂ©is e situaĂ§Ă£o confortĂ¡vel Ă gente de IlhĂ©us atĂ© o começo da dĂ©cada de 1990, quando a praga da vassoura de bruxa se alastrou pelas lavouras. Depois disso, muitos viram suas riquezas escorrendo pelos dedos enfeitados em pesados anĂ©is de pedras preciosas.
Remediado o fungo, um grupo de empresĂ¡rios e fazendeiros tem contornado a crise, com um novo conceito de trabalho. IlhĂ©us, tradicional produtora de cacau, quer agora ser conhecida como fabricante de chocolates de DenominaĂ§Ă£o de Origem Controlada (DOC). Na prĂ¡tica, a ideia Ă© escolher as melhores amĂªndoas (como sĂ£o chamados os grĂ£os do cacau) e produzir chocolates finos, com sĂ³ uma variedade da semente, tirada de frutos de uma mesma regiĂ£o. É nessa hora que entram as deliciosas visitas Ă s fĂ¡bricas, fazendas e lojas dos chocolateiros das redondezas.
— A Bahia produz 60% do cacau brasileiro e tem 20 marcas de chocolate de origem. AtĂ© o fim do ano, esperamos implementar o projeto da Estrada do Chocolate. É uma via de 35 quilĂ´metros, onde ficam as fazendas de cacau e fĂ¡bricas de chocolate de IlhĂ©us e arredores. Entre elas, a que serviu como cenĂ¡rio para a novela da Rede Globo “Renascer” — conta Marco Lessa, idealizador do Festival Internacional do Chocolate e Cacau, que acontece uma vez por ano, e presidente da AssociaĂ§Ă£o de Turismo de IlhĂ©us. — JĂ¡ fizemos um projeto de conscientizaĂ§Ă£o com os fazendeiros, os nativos serĂ£o formados como guias e queremos recuperar a velha ferrovia da regiĂ£o. Temos fazendas antigas fechadas, com 16 suĂtes.
Com paisagens de cartĂ£o-postal, aromas selvagens que vĂªm da mata e sabores purĂssimos de chocolate de verdade, a visita a IlhĂ©us Ă© uma promessa que aguça todos os sentidos.
DO SAGRADO AO PECAMINOSO
Se o seu destino for IlhĂ©us, Ă© importante prestar atenĂ§Ă£o em duas coisas bĂ¡sicas. A primeira Ă© que a cidade tem temperaturas boas durante todo o ano, com mais chuva no inverno e alta temporada no verĂ£o (os preços sobem um pouco quando chega a Ă©poca da passagem dos navios de cruzeiro).
A segunda consiste em lutar contra uma reaĂ§Ă£o involuntĂ¡ria: perder o ar. Chegar ao aeroporto de IlhĂ©us valeria por um passeio Ă parte. Da janelinha ovalada, Ă© possĂvel ver o imponente Rio Cachoeira, que serpenteia a regiĂ£o e rasga a mata local, composta por diversos tons de verde. A pista de pouso Ă© tĂ£o pequeninha e prĂ³xima ao mar, que o viajante desavisado pode achar que o piloto perdeu um pouco a noĂ§Ă£o de espaço e que vai jogar o aviĂ£o contra o oceano.
Uma vez na cidade, a recomendaĂ§Ă£o Ă© hospedar-se na Zona Sul de IlhĂ©us, onde hĂ¡ boas pousadas, bares e restaurantes, alĂ©m da melhor praia urbana da regiĂ£o, a dos MilionĂ¡rios. Com as malas guardadas, Ă© bom reservar algumas horinhas para o Centro HistĂ³rico. Apesar de bem degradado — com calçadas esburacadas, mato em alguns pontos e monumentos nĂ£o tĂ£o bem conservados assim —, a visita vale a pena.
A histĂ³ria de IlhĂ©us Ă© riquĂssima e serve como o primeiro convite para uma ida Ă tal mĂ¡quina do tempo. Comece pelo PalĂ¡cio ParanaguĂ¡, construĂdo em 1907 pelo coronel Adami de SĂ¡ (aquele do bigodĂ£o, dono da Fazenda ProvisĂ£o, lembra?).
O imĂ³vel foi erguido sobre as ruĂnas do ColĂ©gio JesuĂta para servir como sede da prefeitura, mas hĂ¡ um projeto para transformĂ¡-lo em um museu, que contarĂ¡ a histĂ³ria da cidade. Observe dois detalhes: o cacau no brasĂ£o do municĂpio e a estĂ¡tua de Sapho, de mĂ¡rmore, na pracinha em frente ao palĂ¡cio.
De lĂ¡, dĂª um pulo na Igreja Matriz de SĂ£o Jorge dos IlhĂ©us. Inaugurada pelos jesuĂtas em 1556, esta Ă© a construĂ§Ă£o mais antiga da cidade. Corre na regiĂ£o a histĂ³ria de que o coronel mais rico das redondezas, Misael Tavares (1867-1938), comprou um carregamento de pedras de um navio portuguĂªs, que havia encalhado por ali, sĂ³ para calçar a rua em frente Ă parĂ³quia. O motivo: nĂ£o sujar a barra das saias das convidadas do casamento de sua filha, dentro de alguns dias.
Depois de um passeio pudico, Ă© hora de partir para uma parada mais mundana, digamos assim. Ali perto, a apenas alguns quarteirões, fica a casa de Jorge Amado. E era da torre do casarĂ£o, no terceiro andar, que o romancista observava o vaivĂ©m das pessoas e se inspirava para criar os seus personagens desavergonhados.
Diz a lenda que Gabriela, por exemplo, foi inspirada na dona Lourdes, funcionĂ¡ria de ancas largas e seios avantajados, que trabalhava no VesĂºvio. O estabelecimento, por sinal, nunca abrigou a famosa cena da escalada sobre o telhado: o teto do sobrado nem permite tal proeza.
A construĂ§Ă£o da casa tem tambĂ©m uma origem interessante. JoĂ£o Amado de Farias, pai do escritor, ganhou 100 contos de rĂ©is na loteria na dĂ©cada de 1920 e, com a soma, mandou fazer o casarĂ£o. AlĂ©m do imĂ³vel, os visitantes tĂªm acesso a um acervo pequeno de mĂ³veis, mĂ¡quina de escrever (o escritor criou seu primeiro romance na casa) e uma coleĂ§Ă£o de sapos, que mostra sua predileĂ§Ă£o pelos anfĂbios.
MACHADĂƒO MORAVA AO LADO
Percorrendo a vizinhança, dĂ¡ para entender por que a imaginaĂ§Ă£o do escritor ia tĂ£o longe. A alguns passos dali, uma praça cerca o bar VesĂºvio e a Catedral de SĂ£o SebastiĂ£o. E, por mais incrĂvel que pareça, a histĂ³ria dos dois estĂ¡ extremamente ligada.
Os coronĂ©is do cacau costumavam levar suas esposas para assistir Ă s missas e, de lĂ¡, seguiam para o bar, que possuĂa uma passagem secreta para o bordel Bataclan. Mancomunados, os padres rezavam ladainhas enormes, de trĂªs horas de duraĂ§Ă£o. Quando a missa terminava, avisavam os fanfarrões com sete badaladas de sino que havia chegado a hora de voltar para o bar. Um dos pĂ¡rocos teria ganhado uma fazenda inteira por seus serviços.
O Bataclan acabou virando restaurante, onde o ator, poeta e contador de histĂ³rias JosĂ© Delmo se encarrega de alimentar a imaginaĂ§Ă£o do visitante. Conta que a casa teria sido erguida em 1913 por um rico comerciante.
NĂ£o se sabe como ela acabou virando uma casa de libertinagens, em meados de 1920. A partir dessa data, o local foi o mais agitado dos inferninhos, promovendo rendez-vous de prostitutas de todos os tipos com coronĂ©is, capatazes e jagunços. Maria MachadĂ£o regia o brega (como se diz na regiĂ£o) com firmeza, escorada pelo seu braço direito, uma meretriz apelidada de Buzu.
— Ela nĂ£o morava aqui, mas tinha um quarto, que ficava do lado do cassino. Dizem que trabalhava na roça, antes do bordel, e manuseava bem o machado. DaĂ vem o nome — diz Delmo.
O contador de histĂ³rias, que tambĂ©m faz passeios pela cidade, explica que os negĂ³cios começaram a rarear quando o jogo foi proibido no Brasil. O Ăºltimo baile do Bataclan foi em 1949.
Depois disso, a rainha das prostitutas ilheenses teria vindo para o Rio de Janeiro, e o seu paradeiro se perdido pela histĂ³ria. A casa pegou fogo na dĂ©cada de 1970 — dizem os locais, que os poderosos da cidade tentaram apagar a parte mais obscura da rotina dos coronĂ©is —, mas foi reformada em 2004.
FAZENDAS, LENDAS E MUITO CHOCOLATE
Depois de uma galinhada, Roberto Novaes aponta para um descampado que se avizinha Ă sede da Fazenda ProvisĂ£o e lembra das festas de SĂ£o JoĂ£o que a famĂlia costumava organizar numa Ă©poca de vacas gordas, anterior Ă vassoura de bruxa.
— A festa durava trĂªs dias, e minha mĂ£e passava horas na cozinha com as empregadas. Meu avĂ´ mandava botar o pau-de-sebo lambuzado com gordura de boi. Era licor para todo mundo. Uma Ă©poca deliciosa — lembra o tataraneto do coronel Adami de SĂ¡ (olha ele aĂ de novo).
Novaes faz parte da sexta geraĂ§Ă£o da famĂlia a cuidar da fazenda de 400 hectares — 175 deles com cacau. Quando a situaĂ§Ă£o apertou para os produtores, ele voltou de Salvador, onde trabalhava como corretor de imĂ³veis, com soluĂ§Ă£o inovadora: transformar a roça destruĂda em fazenda turĂstica, com hospedagem e visitaĂ§Ă£o histĂ³rica.
A propriedade tem sete quartos mobiliados, com peças de famĂlia datadas de dois sĂ©culos, como o jogo de penteadeira e o armĂ¡rio de jacarandĂ¡, que pertenceu Ă sua tataravĂ³. Entre uma refeiĂ§Ă£o e outra Ă© possĂvel fazer atividades diversas. Rafting, dois tipos de trilha pela mata atlĂ¢ntica e pesca no Rio Almada estĂ£o no cardĂ¡pio.
Quem quiser ter uma experiĂªncia mais completa, no entanto, pode atĂ© pisar no cacau e carregar o saco nas costas, garante Novaes, rindo. Para almoçar e curtir o dia, Ă© preciso avisar com 24 horas de antecedĂªncia. O passeio custa R$ 50 por pessoa.
Com um copo de suco natural de cacau, umbu ou cupuaçu, reserve um tempo durante o dia para conversar com Novaes ou com os funcionĂ¡rios da fazenda sobre as histĂ³rias antigas. Se for para a mata, por exemplo, volte antes de escurecer ou leve um cigarro de fumo de rolo no bolso, para dar para a Caipora (“Ă© uma veinha com cara de doida”, diz). Um antigo lavrador da ProvisĂ£o jura de pĂ©s juntos que jĂ¡ viu a bicha por lĂ¡. E se o caldo entornar, e vocĂª sentir que serĂ¡ vĂtima de emboscada, enterre rĂ¡pido o facĂ£o no chĂ£o para “fechar o corpo”. Se bobear, a “raposa de duas pernas pega”.
Para acalmar os nervos e esquecer da Caipora, outro ponto obrigatĂ³rio Ă© a Fazenda Riachuelo, das poucas no mundo a dominar todas as etapas de produĂ§Ă£o: da plantaĂ§Ă£o do cacau atĂ© as belĂssimas embalagens do chocolate boutique MendoĂ¡. As visitas sĂ£o gratuitas e incluem passeio pelos cacaueiros. No meio da mata, os frutos destacam-se na folhagem.
— Aqui fazemos a cabruca, que Ă© a plantaĂ§Ă£o no meio da floresta atlĂ¢ntica. O cacaueiro precisa de sombra para se proteger, por isso a mata Ă© tĂ£o preservada em IlhĂ©us — explica o gerente da MendoĂ¡, Raimundo MororĂ³.
Na Fazenda Riachuelo, o fruto Ă© colhido sem facĂ£o (para nĂ£o ferir a casca), Ă© lavado, aberto, fermentado e seco antes de seguir para a fĂ¡brica da MendoĂ¡, que fica na entrada da fazenda. MororĂ³ estĂ¡ dentro daquela parcela de empresĂ¡rios que tenta desconstruir a imagem de IlhĂ©us como simples produtor de cacau:
— Tentamos mudar a percepĂ§Ă£o de que o Brasil nĂ£o faz um bom chocolate, tirado de um cacau fino. Por isso, começamos a produzir o nosso prĂ³prio produto sem conservantes, lactose, glĂºten, sem trabalho escravo ou infantil, como ocorre na Costa do Marfim, que Ă© o maior exportador do mundo. Nosso cacau nĂ£o Ă© contaminado por nada: nĂ£o pega nem caminhĂ£o. A regiĂ£o tem potencial para ser a Champagne do chocolate a mĂ©dio prazo.
O cacau Ă© plantado em 1,2 mil hectares da Fazenda Riachuelo. Desse montante, 97% das amĂªndoas sĂ£o vendidas para outros fabricantes. A nata Ă© mantida na casa para ser transformada, 72 horas depois, em barrinhas de todos os tipos. Se contar com o preparo do grĂ£o, o tempo de processamento vai a 25 dias.
A fĂ¡brica tem corredores de vidro, com acesso para todas as etapas. No fim do passeio, Ă© possĂvel comprar barras de atĂ© um quilo e caixas de chocolate. HĂ¡ com gengibre, pimenta rosa, nibs. Sempre com uma porcentagem alta de cacau, a partir de 50%.
— Vamos lançar o 99% de cacau agora. Ele nĂ£o Ă© nem gostoso: Ă© para comer como se fosse remĂ©dio. Flavonoide puro — diz MororĂ³.